sábado, 31 de outubro de 2009

Coincidência

(...) um outro amigo, R., me contou sobre certo livro raro que ele vinha tentando localizar sem sucesso, vasculhando livrarias e catálogos em busca de uma obra supostamente notável, que ele queria muito ler, e como, certa tarde, enquanto andava pela cidade, ele tomou um atalho pela estação Grand Central, subiu a escada que vai dar na avenida Vanderbilt e avistou uma jovem de pé junto à balaustrada de mármore, com um livro nas mãos: o mesmo livro que ele vinha tentando localizar tão desesperadamente.

Embora não seja do tipo que costuma falar com estranhos, R. ficou espantado demais com a coincidência para conseguir permanecer calado. "Acredite ou não", disse ele à jovem, "eu tenho andado à procura desse livro por toda parte."

"Ele é maravilhoso", respondeu a jovem. "Acabei de ler neste instante."

"Sabe onde posso achar outro exemplar?", perguntou R. "Não posso nem lhe dizer o quanto isso significa para mim."

"Este aqui é para você", respondeu a mulher.

"Mas ele é seu", disse R.

"Ele era meu", respondeu a mulher, "mas agora eu já acabei de ler. Eu vim aqui hoje para entregá-lo a você."

Paul Auster, O caderno vermelho

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Soberba

Aniquilarei a altivez de sua numerosa população, e sua arrogância transformar-se-á em luto

Baruc, 4


Nunca permitas que o orgulho domine o teu espírito ou tuas palavras, porque ele é a origem de todo o mal

Tobias, 4, 14


Fazei, Senhor, que o orgulho desse homem seja cortado com sua própria espada

Judite, 9, 12


A soberba precede à ruína; e o orgulho, à queda

Provérbios, 16


A zombaria e a ofensa são próprias dos orgulhosos; a vingança os espreita como um leão

Eclesiásticos, 27, 31


[...] para que todas as árvores junto às águas não se exaltem na sua estatura, nem levantem o seu topo no meio dos ramos espessos, nem as que bebem as águas venham a confiar em si, por causa da sua altura; porque todos os orgulhosos estão entregues à morte e se abismarão às profundezas da terra, no meio dos filhos dos homens, com os que descem à cova

Ezequiel, 31, 14


A soberba dos mortais será abatida, e o orgulho dos homens será humilhado. Só o Senhor será exaltado naquele tempo

Isaías, 2, 11

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Quando Nietzsche chorou

"As metas se realizaram, sim. Mas sem satisfação, Friedrich. De início, a euforia de um novo sucesso durava meses. Gradualmente, porém, foi se tornando mais volátil - semanas, depois dias, até horas - até que agora o sentimento se evapora tão rapidamente, que já nem penetra em minha pele. Acredito agora que minhas metas foram imposturas: jamais foram o verdadeiro destino do rapaz infinitamente promissor. Muitas vezes, sinto-me desorientado: as antigas metas deixaram de funcionar e perdi o dom de inventar metas novas. Quando penso no fluxo de minha vida, sinto-me traído ou enganado, como se tivesse sido vítima de uma piada celestial, como se tivesse esgotado minha vida dançando à melodia errada." [...]

"Metas? As metas estão na cultura, no ar. Nós as respiramos. Todos os meninos com quem cresci inalaram as mesmas metas. Todos queríamos pular para fora do gueto judaico, subir na vida, ter sucesso, riqueza, respeitabilidade. Era o que todos queríamos! Nenhum de nós jamais se pôs deliberadamente a escolher metas; elas estavam bem ali, as consequências naturais de meu tempo, meu povo, minha família."

"Mas elas [as metas] não serviram para você, Josef. Não foram suficientemente firmes para sustentar uma vida. Bem, talvez fossem bastante firmes para os sem-visão, ou para os medíocres que correm a vida toda atrás de objetivos materiais ou mesmo para os que atingem o sucesso mas têm o dom de continuamente fixar novas metas fora do alcance deles. Mas você, como eu, é um homem de visão. Você olhou para longe demais na vida. Você viu que era fútil alcançar metas erradas e fútil fixar novas metas erradas. Multiplicações por zero dão sempre zero!" [...]

"Chegar aos quarenta abalou a idéia de que tudo me era possível. Subitamente, entendi o fato mais óbvio da vida: que o tempo é irreversível, que minha vida estava se consumindo. É claro que eu já sabia disso antes, mas sabê-lo aos quarenta foi uma espécie diferente de saber. Agora, sei que o rapaz infinitamente promissor foi meramente uma ordem de marchar, que promissor é uma ilusão, que infinitamente não tem sentido e que estou em fileira cerrada com todos os outros homens em direção à morte."

"É estranho, Josef, como um cemitério consegue me acalmar. Contei-lhe que meu pai foi um pastor luterano. Mas será que lhe contei que meu quintal e meu local de brincar era o adro da aldeia? Por sinal, você conhece o ensaio de Montaigne sobre a morte, em que nos aconselha a morar em um quarto com vista para um cemitério? Aclara nossa mente - alega ele - e mantém as prioridades da vida em perspectiva."

Fragmentos do livro Quando Nietzche chorou, de Irvin D. Yalom

sábado, 10 de outubro de 2009

Ma vie

Tu t'en vas sans moi, ma vie.
Tu roules.
Et moi j'attends encore de faire un pas.
Tu portes ailleurs la bataille.
Tu me désertes ainsi.
Je ne t'ai jamais suivie.
Je ne vois pas clair dans tes offres.
Le petit peu que je veux, jamais tu ne l'apportes.
A cause de ce manque, j'aspire à tant.
A tant de choses, à presque l'infini...
A cause de ce peu qui manque, que jamais tu n'apportes.

Henri Michaux (1899-1984)

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Na Estação Central

Na Estação Central, no meio do dia
uma mulher está mijando na calçada.
Com as costas para a parede e as pernas afastadas
ela inclina-se, o cabelo caindo sobre o rosto,
a saia sombria e o casaco nem sequer levantado.
Sua urina bate na pedra com força
e evapora em direção à sarjeta.
Ela não é velha, nem jovem,
não é suja, nem limpa,
nem em trapos, mas quase.
Ela está no centro da cidade, o fantasma no banquete.
Executivos saindo do trem de Londres
assustam-se incrédulos mas pulam o rio
e mansamente juntam-se à fila do táxi.
A gente de Glasgow passa apressada,
mal olha, ou se atreve a olhar,
ou olha severamente, dura como aço, como
o olhar do poeta, não duro como aço
mas severo, rápido, diminuindo o passo
um pouco, registrador maldito, seus sentimentos
confusos como as folhas de novembro.
Ela é uma estátua em um redemoinho,
surrada por nada que ele possa dizer em palavras,
sangrando nas ondas de conversa
e transita fluidos terríveis de necessidade.
Somente dois homens francamente param,
com um sorriso largo, jogam-lhe um insulto
enquanto cruzam a rua para apostar no jogo.
Sem eles a indignidade,
a dignidade, seria incompleta.

Edwin Morgan (1920 -)